quarta-feira, 6 de junho de 2012

A questão dos ícones na Tradição da Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia

Autor: prof. Pablo Neves
Especialista em Arte Sacra pelo Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro
Professor do Mosteiro de São Bento de São Luis
Diretor do Ecclesia Design

Dentre os elementos de maior destaque nas Igrejas ditas apostólicas, destaca-se, cada uma logicamente com suas particularidades, o fazer artístico como expressão genuína de fé. Do oriente ao ocidente, as Igrejas fundadas pelos apóstolos de Cristo desenvolveram uma íntima relação com a arte, chamada então de “sacra” para definir todo o fazer artístico ligado de forma direta ao Sagrado. 

Entre latinos e gregos já é de comum conhecimento suas várias expressões. Estátuas, ícones e toda riqueza de adornos são mundialmente conhecidos e admirados. Contudo, na tradição da Igreja Sirian Ortodoxa de Antioquia, devido principalmente à deficiente formação do clero, sobretudo na diáspora (fora do território canônico) como é o exemplo do Brasil, nos deparamos frequentemente com graves erros quanto a esse assunto. Neste breve texto, apresento de forma resumida alguns pontos importantes a serem considerados no tocante à arte sacra na Tradição ortodoxa siríaca. 

Altar patriarcal em Damasco
Primeiramente, que fique claro: ícones são sim permitidos numa Igreja Sirian Ortodoxa. Prova disso são as fotos da Igreja de São Pedro e São Paulo, no Mosteiro de Santo Efrém, sede do patriarcado. A presença de ícones nessa Igreja (são pelo menos três), onde o próprio Patriarca celebra, por si só é a prova da legítima presença dos ícones na tradição siríaca. Obviamente, a organização, quantidade e sentido da presença de ícones numa Igreja Ortodoxa Siríaca é diferente da presença desses mesmos ícones numa Igreja Romana ou numa Igreja Ortodoxa Grega. Os gregos possuem, em sua estrutura litúrgico-arquitetônica o que chamam de “iconóstase”, ou seja, uma parede repleta de ícones com significado e organização muito bem definidos, separando o santuário da nave. O iconostásio está presente na própria dinâmica da liturgia grega, sendo indispensável nas celebrações. 

Há quem alegue que os ícones não façam parte de nossa Tradição pelo fato de as Igrejas não-calcedonianas (sírios, coptas, armênios e etíopes) não terem, obviamente, participado do II Concílio de Nicéia (787 d.C), no qual fora definido por latinos e gregos a validade da veneração aos ícones e imagens sagradas. Ora, a “não” participação deste concílio não implica numa discordância teológica de suas resoluções. Os ícones não foram “inventados” durante o II Concílio de Nicéia, apenas se afirmou concretamente a posição da Igreja quanto à sua válida veneração. 

Por questões culturais, latinos e gregos desenvolveram a presença litúrgica dos ícones de forma mais abundante dentro de seus templos. Contudo, não há nada de errado ou de prejudicial à fé ortodoxa siríaca a presença de ícones nos templos ou nas casas dos fiéis. O que é se deve observar é o sentido, a quantidade e se estes ícones estão de acordo com as devoções próprias de nossa Igreja.

ícone sírio de Cristo
Por exemplo, ícones que retratem Cristo com seu coração aparente referem-se à devoção católica romana ao Sagrado Coração de Jesus. Tal devoção não existe em nossa Igreja, portanto, não faz sentido um ícone deste numa Igreja Ortodoxa Siríaca. Aliás, ícones de Nosso Senhor Jesus Cristo, em nossas Igrejas, devem ser somente aqueles que apresentam o Cristo orando no Jardim do Getsêmani ou de Jesus de frente, usando a combinação das cores azul (símbolo da realeza eterna) e o vermelho (simbolizando o sacrifício) na posição de benção com a mão direita, como na imagem ao lado: 

Da mesma forma, é errado o uso da imagem da Mãe de Deus com o coração exposto, haja visto que essa devoção também não existe em nossa Igreja. É também comum ver imagens de santos católicos romanos ou bizantinos em nossas Igrejas, o que, logicamente, não faz sentido algum. Qualquer santo canonizado por gregos ou latinos após a separação de Calcedônia não faz parte de nossa tradição. É importante que os padres e leigos procurem conhecer nossos santos, pessoas que viveram e morreram por nossa Igreja e aos quais devemos memória. Lembrando que, a “não veneração” destes santos (latinos e gregos pós-cisma) não significa falta de respeito com tais devoções ou seu menosprezo.

Igreja de São Pedro e São Paulo, Mosteiro de Santo Efrém em Damasco - Patriarcado
Detalhe aos ícones de Maria e de Cristo
Assim, não existe “iconóstase” numa Igreja Ortodoxa Siríaca, portanto, não deve haver um número abundante de ícones na mesma. Recomenda-se um de Cristo, no centro do santuário, sobre o altar, um de Maria e outro do padroeiro da Igreja, por exemplo (mas não obrigatoriamente) que dá nome àquela Igreja. Pode haver mais? Sim, mas não muitos. Sempre lembrando que sejam de santos de nossa Tradição e com características de nossas devoções. 

E pode não haver ícone algum dentro da Igreja? Sim. Existem templos de nossa Igreja que não possuem ícones, mas isso não se deve a nenhum tipo de rejeição teológica. 

Há também pinturas de anjos, por exemplo, na estrutura do altar e nas paredes. Estes também podem estar presentes, cuidando sempre da quantidade e do conjunto harmônico para não poluir visualmente a Igreja. Veja que tais pinturas não se tratam de ícones em si. Aliás, fotos de ícones impressas e emolduradas não são ícones. Ícones de verdade são feitos por iconógrafos preparados e devidamente autorizados pelo bispo, com sua benção.
Pablo Neves durante pintura dos ícones de Maria, Jesus e Santo Efrém
E as estátuas, pode? Resposta: Não, nunca! Estátuas não fazem parte de nenhuma tradição oriental, nem mesmo entre os gregos. É uma característica latina herdada da arte romana pré-cristã. De forma enfática, numa Igreja Ortodoxa Siríaca, nunca deve existir imagens de escultura. Há quem pergunte: e nas casas dos fiéis? Nesse caso, sobretudo na diáspora, permite-se, porém nunca recomenda-se.

Quanto à cruz, esta também não deve apresentar a figura do crucificado (figura à esquerda). Nas outras Igrejas o sentido teológico da cruz com a imagem de Cristo crucificado é, de fato, justificada. Contudo, nossa tradição vê a cruz como um símbolo da Ressurreição. Nós adoramos o Cristo, que derrotou a morte, através de sua gloriosa Ressurreição. Durante o Santo Qurbono (Divina Liturgia ou Santa Missa), contemplamos Cristo ressuscitado e vitorioso, e não morto na cruz. Por isso, a cruz deve ser simples e/ou, talvez, com alguns adornos nas bordas, mas nunca com a imagem do crucificado. 

Portanto, fica a dica de que é sempre importante, para nós ocidentais, fazer uma leitura visual das Igrejas no oriente e, mesmo que puramente por bom senso, ver o que pode ou não estar em nossas Igrejas. Nem demais e, se possível, nem de menos. A beleza de um templo educa, doutrina e nos leva a contemplar de forma mais sublime aquilo que é sagrado.

Um comentário:

  1. Muito obrigado por seu texto direto, descomplicado, esclarecedor e pacificador. Tão bom relembrar que o mais importante é aquilo que nos une, Cristo, e não algumas diferenças culturais e de tradição que, mesmo riquíssimas, são, de fato, secundárias. Claro que não podemos perder de vista os problemas teológicos que podem se esconder em uma ou outra prática, mas rezemos a Deus para que Ele nos dê a unidade conforme a Sua divina vontade.

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